TEORIA TRADICIONAL E TEORIA CRÍTICA
Uma análise superficial pode levar a equivocada conclusão que entre Max Horkheimer e Arthur Schopenhauer há um abismo filosófico intransponível. Embora o pensamento de ambos, possam, a principio, serem antagônicos, um estudo mais detalhado revela, que em muitos aspectos, suas filosofias convergiram numa interpretação da realidade. O objetivo deste trabalho é analisar a trajetória filosófica de Max Horkheimer, dando ênfase a seus textos tardios, onde parece-nos ocorrer uma ruptura com o materialismo histórico e um alinhamento com o pessimismo de Schopenhauer.
No prefácio a reedição da obra Teoria Crítica I, Horkheimer admite a importância da filosofia de Schopenhauer em sua formação intelectual.
“ O pessimismo metafísico, momento implícito em todo pensamento genuinamente materialista, me foi familiar desde sempre. À obra de Schopenhauer devo meu primeiro contato com a filosofia; a relação com a doutrina de Hegel e de Marx, o desejo de compreender e de mudar a realidade social não resgataram, apesar do contraste político, minha experiência com sua filosofia.”1
Para entendermos o alcance dessa influência, faz-se necessário um recuo aos textos inicias de Horkheimer, onde o materialismo histórico é o fio condutor da Teoria Crítica.
No ensaio Teoria Tradicional e Teoria Crítica, Horkheimer funda um movimento intelectual e político que visa à compreensão e transformação da sociedade. Os fundamentos teóricos e conceituais, baseados na obra de Karl Marx, insistem que a realidade seja apreendida levando-se conta as transformações sociais, políticas e sobretudo econômicas. Segundo Horkheimer, o verdadeiro teórico crítico se distingue daquele que pratica a teoria tradicional, devido a sua capacidade de renovar-se e atualizar sua teoria com base em novas configurações históricas .
“(...) o teórico e sua capacidade específica são considerados em sua unidade dinâmica com a classe dominado, de tal modo que as exposições das contradições sociais não seja meramente uma expressão da situação histórica concreta, mas também um fator que estimula e transforma. ”2
Assim, a Teoria Crítica tem como meta a compreensão da ação das forças produtivas, a dialética reinante, e , na posse do conhecimento dos processos que bloqueiam a liberdade dos indivíduos, escravizados por uma força irracional, cujo entendimento lhes escapa, elaborar diagnósticos que visam o fim exploração, da miséria, em outras palavras, buscar a emancipação do homem. Essa liberdade, só seria possível, segundo Horkheimer, quando os indivíduos estivessem livre do jugo do capitalismo,da racionalidade instrumental e compartilhassem uma sociedade justa.
Para Horkheimer, é equivocada a idéia de atribuir ao proletariado a verdade universal. Os acontecimentos históricos demostraram que os trabalhadores não são portadores do conhecimento correto da sociedade.
“ Mas nesta sociedade tampouco a situação do proletariado constitui garantia para o conhecimento correto. Por mais que sofra na própria carne o absurdo da continuidade da miséria e do aumento da injustiça, a diferenciação de sua estrutura social estimulada de cima , e a oposição dos interesses pessoal e de classe, superadas apenas em momentos excepcionais, impede que o proletariado adquira imediatamente consciência disso. ”3
É possível perceber no ensaio “ Teoria Tradicional e Teoria Crítica ” um certo pessimismo no diagnóstico e na avaliação do papel do proletariado, entretanto Horkheimeir ainda vislumbrava condições para emancipação.
ESCRITOS PÓS-GUERRA
No entanto, nos anos de pós-guerra, o otimismo de Horkeimer é substituído por uma análise cética em relação as possibilidades de emancipação. Essa descrença está diretamente associada com as mudanças ocorridas no sistema capitalista.
Os estudos de Friedrich Pollock sobre o capitalismo , tiveram profunda influência nos diagnóstico sombrio elaborado por Horkeimer no período pós-guerra. Para Pollock, as mudanças ocorridas no capitalismo provocaram um predomínio do controle político do capitalismo , em detrimento do econômico. Assim, Pollock percebe uma reorganização da economia e não vislumbra o colapso do capitalismo previsto por Karl Marx. Pollock irá denominar esse capitalismo exercido mediante controle politico de capitalismo de estado ou capitalismo administrado.
“ Tal capitalismo de Estado seria caracterizado, em primeiro lugar, pela retirada do mercado da função de coordenador da produção e da distribuição, substituída por um sistema de controles diretos exercidos pelo Estado. Consequentemente, livre comércio, livre iniciativa e trabalho livre seriam praticamente abolidos. Haveria cinco elementos em torno dos quais se estruturaria , concretamente, tal modelo. Primeiro, seria formulado um plano geral que dirigiria a produção,a distribuição, a poupança e o investimento. Segundo, todos os preços da economia seria administrados em função do plano e não poderiam flutuar livremente. Terceiro, o lucro, apesar de continuar a exercer um papel importante, seria subordinado ao plano, não podendo em nenhuma hipótese contradizer os objetivos deste. Quarto, toda improvisação nas atividades estatais seria substituída por uma racionalização e uma administração científica. Por fim, os meios econômicos seria substituídos por meios políticos como última garantia de reprodução da vida econômica. ” 4
Desta forma, as mudanças garantiram ao sistema capitalista sua sobrevivência, provando sua capacidade de adaptação e superação de crises. Além disso, o controle exercido pelo Estado coibia a ação do proletariado. A teoria marxista, que previa a destruição do sistema capitalista ante sua próprias contradições internas não se confirmou.
As conclusões de Pollock, tiveram uma forte influência nua obra Dialética do esclarecimento escrita por Horkheimer e Theodor W. Adorno. Segundo Marcos Nobre, o objetivo de ambos foi de buscar compreender por que a razão, ao invés de levar a emancipação , resultou num bloqueio estrutural das possibilidades de emancipação. Essa forma de razão instrumentalizada encontra sua forma plena do mundo do capitalismo administrado.
“ mas, se é assim, também o próprio exercício crítico encontra-se em uma aporia: se a razã instrumental é a forma única de racionalidade no capitalismo administrado, bloqueando qualquer possibilidade de emancipação, em nome do que é possível criticar a racionalidade instrumental? Horkeimer e Adorno assumem conscientemente essa aporia, dizendo que é, no capitalismo administrado, a condição de uma crítica cuja possibilidade se tornou extremamente precária.”5
MAX HORKHEIMER E ARTHUR SCHOPENHAUER
No ensaio Horkeimer leitor de Schopenhauer, Flamarion Caldeira Ramos demonstra como o motivo do pessimismo se desenvolveu ao longo de obra de Horkheimer. Segundo Ramos, os textos das décadas de 50 e 60 assumiam um caráter de crítica da sociedade administrada e da razão instrumental,entretanto o ensaio “ O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião” , escrito em 1971, revela uma aproximação com a teologia. Ramos, advoga que o pessimismo sempre esteve presente na filosofia de Horkheimer, mesmo em seus escritos iniciais da década de 30, radicalizando-se nas obras de pós-guerra, que segundo ele é visível a influência de Schopenhauer.
“ Disso é consequência a falência dos sistemas objetivos da razão, que ainda tentavam dar voz às necessidades mais essenciais do homem e da natureza, e em seu lugar entra o mero cálculo e a transformação dos meios em fins. Esse talvez seja o momento mais importante da leitura horkheimiana de Schopenhauer, pois sem dúvida este último serviu de inspiração ao primeiro na medida em que Schopenhauer já considerava a razão , desvinculada de qualquer preocupação com o conhecimento objetivo, como um mero instrumento da vontade de viver.”6.
Ramos afirma encontrar nos textos tardios por Horkheimer uma profunda desilusão. Segundo ele, o filósofo de Frankfurt, ao constatar que os bloqueios para emancipação são de toda ordem, e que qualquer perspectiva de uma sociedade mais justa é improvável, traduz seu melancolia e busca refúgio na filosofia de Schopenhauer. Desta forma, Horkeimer se une a Schopenhauer na crítica ao idealismo, a qual procura justificar o sofrimento e injustiças na expectativa de um devir histórico.
“ A atualidade e o valor de Schopenhauer, segundo Horkheimer , consistem em sua insistente recusa de qualquer conciliação idealista de que o sofrimento encontre sua justificação.”7
Horkheimer reconhece no filósofo da vontade um "pessimista clarividente" que teria antecipado aquilo que a história confirmara. A atualidade de Schopenhauer é então considerada sob ponto de vista histórico, isto é, mediante a confirmação das guerras e de todas as atrocidades e horrores do século XX. Schopenhauer, recusa radicalmente o otimismo hegeliano em face da história, desmistificando "a fábula idealista do ardil da razão, graças a qual se justifica a crueldade do passado em nome de um final feliz".
No que se refere ao sentido ao sentido dessa recusa, Horkheimer entende que para Schopenhauer não é possível haver justificativa para o sofrimento humano e qualquer tentativa nesse sentido e questionável e imoral.
A identificação com a crítica schopenhauriana , assume um outra perspectiva no ensaio de 1971 . Nesse texto, ganha relevo a associação da filosofia de Schopenhauer com a religião cristã . A comparação, parte da convicção que os horrores do mundo e de todos os tormentos carece de um suporte metafísico. A supremacia da razão instrumental, a descrença por toda a filosofia, que não esteja vinculada à pratica, só reforçam o isolamento do homem moderno. Assim, Horkheimer encontra em Schopenhauer o consolo metafísico diante do mundo administrado.
“ tal como os sistemas metafísicos, os religiosos resultam dessa mesma necessidade humana de descobrir o que há para além da natureza ”, para além da existência fenomênica. No que diferem é apenas em que a metafísica, buscando legitimar-se a si mesma por meio da razão, exige um grau de reflexão e cultura de que nem todos os homens podem dispor, enquanto a religião, justificando seus sistemas extrinsecamente, isto é, recorrendo à revelação que os milagres devem corroborar vêm a servir à imensa maioria dos homens capazes de crer.”8
A manutenção do simbolismo da religião não visa, segundo Horkheimer, a instauração de dogmas , mas sim a preservação de idéias, como Solidariedade, Justiça, imprescindíveis para uma sociedade mais justa. A desintegração da família, o declínio da verdadeira autoridade, a perda dos laços, sejam eles religiosos, étnicos, nacionais , confirmam os efeitos nocivos da ciência instrumentalizada. Para Schopenhauer, a ciência, destituída da capacidade de apreender a essência das coisas, é movida apenas pelo impulso e interesse dos indivíduos, portanto sua gênese está associada a Vontade, impulso que a move a faz progredir. Chiarello, reconhece que a crítica dirigida por Schopenhauer se aproxima em muitos aspectos a realizada por Horkheimer em sua tese da razão instrumental.
Se estamos submetidos a força impiedosa da Vontade e não há nada que possamos fazer para deter o curso dos acontecimentos, e se a sensação de estar no mundo é um completo vazio e a iminência aniquilação é de forma paradoxa nosso tormento e nosso consolo, como a filosofia de Schopenhauer pode nos ajudar a superar a realidade? Horkhemeir parece encontrar no pessimismo schopenhauriano uma forma de recuperação com valores esquecidos.
“ A teoria pessimista de Schopenhauer é um consolo. Em contraste com a mentalidade atual, sua metafísica oferece a mais profunda fundamentação da moral, sem entrar em contradição com conhecimento científico e , sobretudo, sem recorrer à representação de espíritos sobrenaturais, eternos, bons e maus.”9
A partir da leitura dos textos citados, pode-se compreender a afirmação de que experiência e a história deram razão a Schopenhauer. Sua filosofia , na análise de Horkheimer, já presentia o mundo administrado e a automação do homem. A sociedade do presente está controlada e submetida a razão instrumental e o único conforto possível, segundo Horkheimer, é teoria da identidade de vontade, a qual permite ao homem admitir que sua finitude é também a de todos os seres , criando nele um sentimento de comunhão com a totalidade. Schopenhauer legaria assim um desígnio, comum a todos os seres, fundamentando filosoficamente o amor ao próximo.
BIBLIOGRAFIA:
CHIARELLO, M.G. A filosofia em duas metades . Estudo sobre o conceito de natureza em Max Horkheimer. Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 1995.
HORKHEIMER, M. "La actualidad de Schopenhauer" In: Sociologica, 1966.
_____. Teoria Crítica I. Trad. De Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva, 2006.
_____. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. Trad. . In: Coleção “ Os Pensadores ”, São Paulo: Abril Cultural, 1980.
_____. O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião. Trad. Flamarion Caldeira Ramos. In: Cadernos de Filosofia Alemã XII. São Paulo: FFLCH-USP, 2008.
NOBRE, M. A Teoria Crítica entre o nazismo e o capitalismo tardio. In: Curso Livre de Teoria Crítica. Marcos Nobre ( org.). Campinas: Papirus, 2008.
RAMOS, F.C. Horkheimer leitor de Schopenhauer : uma tradução e um breve comentário . In: Cadernos de Filosofia Alemã XII. São Paulo: FFLCH-USP, 2008.
RUGITSKY, F. Limites e Possibilidades. In: In: Curso Livre de Teoria Crítica. Marcos Nobre ( org.). Campinas: Papirus, 2008.
1Horkheimer, M. Teoria Crítica I. São Paulo : Editora Perspectiva, 2004, p. 8.
2Horkeimer, M. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 136.
3Idem, p. 134, 135.
4Pollock, F. Tradução Fernando Rugisky. Limites e Possibilidades. In: Curso Livre de Teoria Crítica. Campinas: Papirus, 2008, p. 65
5Nobre, M. Teoria Crítica entre o Nazismo e o Capitalismo Tardio. In: Curso livre de Teoria Crítica. Campinas: Papirus, 2008, p. 50.
6Ramos, F.C. Horkeimer leitor de Shopenhauer: uma tradução e um breve comentário. In: Cardenos de Filosofia Alemã XII. São Paulo: Departamento de Filosofia – FFLCH-USP. 2008, p. 102.
7Idem, p. 103.
8Chiarello, M.G. A filosofia em duas metades: Estudo sobre o conceito de natureza em Max Horkheimer. Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 1995, p. 162.
9Horkheimer, M. O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião. Tradução Flamarion Caldeira Ramos. In: Cadernos de Filosofia Alemã XII. São Paulo: Departamento de Filosofia – USP. 2008, p. 127.
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